quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O MUNDO MUDOU

Dia desses, estava indo ao Teatro Frei Caneca, rezando para que o metrô não estivesse lotado, para participar do ensaio do espetáculo A Loba de Ray Ban. Nós que trabalhamos com teatro, estamos indo para o trabalho, sempre que está todo mundo voltando do trabalho. Pra que eu fui rezar. Na estação seguinte, entrou um sujeito, estilo gaúcho da fronteira, com el bigodon imenso, e começou a falar em alto e bom som:

- Está escrito na Bíblia, Corinto 1, versículo 3 (sei lá se é isso, mas vamos lá): toda mulher tem que usar saia, tem que deixar o cabelo comprido, e se desvirginar depois do casamento. Toda mulher tem que ser fiel ao marido, tem que ser boa esposa, e temente a Deus. Nenhuma mulher deve usar maquiagem, não pode isso, não pode aquilo, e não sei mais o quê...

Ah, pra quê! Dali a pouco, uma delas – que por sinal estava ao meu lado – gritou:

- Aê tio, dá um tempo. Eu trabalhei o dia inteiro, pego este metrô lotado, e ainda tenho que agüentar o senhor falando esse monte de abobrinha.

- Se vc não quer ouvir a palavra de Deus, então feche os ouvidos!

- Isso aqui não é igreja não ô.

- Toda mulher tem que respeitar o marido, tem que ouvir a palavra de Deus e blábláblábláblá...

A mulherada se revoltou:

- Cala a boca aê, tiozinho!

- É isso aí, fica quieto se não nós vamos chamar os seguranças.

- Isso aqui não é igreja não!

- Vai seu machista!

- Está na Bíblia! Toda mulher tem que blábláblá...

O vagão inteiro se rebelou, inclusive eu, é claro. De um lado, o El Bigodon de Dios, e do outro, uma geração que já não acredita mais nesses profetas do blábláblá, nesses representantes de bispas Sônias, Edir Macedos, padres pedófilos, representantes de um deus (com minúscula mesmo) que já morreu faz tempo.

Isso durou até a estação Sé, quando, finalmente, um grupo de garotas conseguiu chamar um dos seguranças. E não é que ele pôs o El Bigodon pra fora. O vagão em peso aplaudiu. Algumas pessoas devem ter ficado horrorizadas. Onde já se viu!? Afinal o homem estava falando em nome de Deus.

Eu acho qualquer imposição sonora um porre. Ainda mais uma imposição machista, anacrônica e fora do seu lugar. Quer propalar o Corinto, o Itaquera, o Anhangabaú, ou seja lá o que for, então vá para igreja, lá é o lugar, não o vagão de um metrô lotado, em plena sexta-feira, às cinco e meia da tarde. Ah!, pelo amor de Deus, né.

Freud, em uma nota de roda pé do maravilhoso ensaio O Mal-Estar na Civilização, cita uma frase de Goethe:

"Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!"

O MONSTRO INVISÍVEL

Em julho deste ano, tive o privilégio de fazer o som do espetáculo O Continente Negro, com Débora Falabella, Yara de Novaes e Ângelo Antonio. Ficamos durante três semanas no teatro Nelson Rodrigues, na região central do Rio de Janeiro.

Em todos os espetáculos que tenho feito, logo nos primeiros ensaios, peço para que liguem o ar condicionado. Não porque eu seja calorento, ou porque esteja na andropausa não, mas se tem uma coisa que costuma atrapalhar a audição num teatro, essa coisa se chama ar condicionado. Logo no primeiro ensaio, percebi que teríamos problemas. O barulho do ar era tão desagradável, que as pessoas que se sentassem do meio da platéia para trás (ficando assim, em baixo do mezanino e muito mais próximas dos dutos), teriam, como som-primeiro, o ruído do ar condicionado, e lá no fundo, lá atrás desse monstro invisível, as vozes dos atores. Diferentemente do espetáculo da Fernanda Montenegro, que comentei no post anterior, O Continente Negro não permitia o uso de microfones de lapela, por uma série de questões; e mesmo que permitisse, as pessoas que ficassem do meio da platéia para trás teriam que fazer um enorme esforço para abstrair o som do monstro invisível.

Para a minha sorte, estava ocorrendo um fenômeno raríssimo no Rio de Janeiro, estava frio. Frio, frio, não né, para nós paulistanos, mas um friozinho à la Rio de Janeiro. A produção do Continente pediu para que a administração do teatro ligasse o ar condicionado meia hora antes de abrir a casa, e o desligasse assim que fosse dado o terceiro sinal. Assim, a sala ficaria numa temperatura agradável e poderíamos ouvir perfeitamente o espetáculo. Certo? Errado!!! Quando se acha que tudo está certo, que tudo está combinado, eis que surge um burocrata de plantão e que resolve mudar tudo, faltando apenas cinco minutos para a nossa estréia. E tome ar condicionado!

No final do espetáculo, encontrei a produtora Fernanda Signorini, que por sinal havia se sentado em baixo do tal mezanino, e que confirmou o que nós já sabíamos: não se ouve nada com o ar condicionado ligado. Fiquei arrasado. Uma trilha sonora maravilhosa, cheia de efeitos, além de ser uma das mais difíceis que já tinha operado; os ensaios haviam sido maravilhosos, afinal, não nos apresentávamos a mais de um ano, e logo no primeiro ensaio percebemos que por trás da memória, há uma memória proustiana escondida; o cenário havia sido todo reformado; os atores, maravilhosos, como atores e como pessoas. A produção, idem; e, finalmente, eu conhecia o Aderbal Freire Filho, um gênio. E todo o encanto de uma estréia foi anuviado por um burocrata que mal entende de teatro, e que estava ali, mais para exercer um falso poder, do que para cuidar do espaço e do público.

Enfim, a produção foi voando na cabeça desse indivíduo, que finalmente se comprometeu a desligar o ar condicionado assim que déssemos o terceiro sinal. Infelizmente isso não ocorreu com essa precisão, às vezes ele desligava 15 minutos após o início do espetáculo, às vezes 20, e por aí vai.

Após uma breve pesquisa, olha só o que eu achei:

O teatro Nelson Rodrigues foi inaugurado em 1976, e na época se chamava Teatro do B.N.H.
“Em 1978, o teatro foi fechado para uma reforma na parte acústica, já que vazava o barulho do ar-condicionado.” Encontrei a informação acima, no livro Teatros - Uma Memória do Espaço Cênico no Brasil, de J. C. Serroni. No site do Centro Técnico de Artes Cênicas, encontrei esta referência:“no segundo semestre de 1978 foi feita uma reforma na acústica do teatro, pois o silêncio era perturbado pela aparelhagem de ar condicionado."

Para não ficar só no terreno negativo, uma referência de ar condicionado que respeita a audição do espectador, é o ar condicionado do teatro Caixa Cultural de Brasília. Bem que a Caixa Cultural do Rio poderia copiar o ar condicionado da Caixa de Brasília. Só não copiem o ar condicionado do governo de Brasília, ele é muito ruidoso, além de exalar um cheiro enjoativo de arruda -- para ficar no mínimo.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O VILÃO INVISÍVEL



Eu estava no Rio de Janeiro fazendo o espetáculo Quem Tem Medo de Virgínia Wolf, com o Marco Nanini, Marieta Severo, Fábio Assunção e a Sílvia Buarque, no verão de 2001, quando a ilustre Andréia Zeni me ligou. Ela me disse que, desde a estréia, o espetáculo Alta Sociedade, com Fernanda Montenegro e Ítalo Rossi, estava com muitos problemas na sonorização. Andréia me pediu para ir ao Scala (casa de shows no Rio de Janeiro) para entender o que havia de errado com o som. Por sorte, a temporada do Quem Tem Medo já estava no fim, e eu poderia, além de resolver o problema da sonorização, substituir o rapaz que estava fazendo a operação de som do espetáculo.
Assim que fui apresentado à Fernanda, ela me disse que o problema com a sonorização, parecia com aquelas doenças em que cada médico dá um diagnóstico diferente, e, portanto, um remédio diferente. Depois de conversarmos, Fernanda, Ítalo e toda a equipe técnica apresentaram o espetáculo na íntegra, para que eu pudesse perceber o que havia de errado com o som.


Ao me sentar na platéia, percebi que o som do ar condicionado
me abraçava. Além do abraço do ar em si, havia um tilintar irritante que vinha de dois imensos lustres de cristal pendurados na platéia. Em cima de cada lustre, um duto de ar ficava obrigando um cristal a conversar com o outro. Os cristais e o ar condicionado só não se deram conta de que atrapalhavam o público lá em baixo.
Uma coisa é certa, raramente o espectador racionaliza esse tipo de problema, " nossa, quanto ruído tem nesse teatro, fiquei tão irritado que nem consegui prestar atenção"; é muito mais comum o espectador pensar: " não gostei, achei o espetáculo meio chato ". É claro que o ruído do ar condicionado ou seja lá qual ruído for, não determinará a aceitação, ou não, do público ao espetáculo. Mas pode influenciar, e muito, a percepção do espectador; além de exigir um tipo de concentração que o público raramente está acostumado a usar -- ainda mais na era da concentração fragmentária induzida pela televisão.
Diferentemente da visão, que pode ser instantaneamente direcionada para qualquer lugar, sem o menor esforço; a audição, quando se quer apurar um determinado som no meio de tantos outros, exige um certo grau de concentração. Esse grau de concentração, quando exigido de maneira involuntária e inconsciente, faz com que o espectador fique num estado de tensão, contrário ao que se espera de um público de teatro.

Por fim, acabei resolvendo o problema, não só com a troca de alguns equipamentos, e com a realocação de algumas caixas acústicas, mas, principalmente, testando máquina por máquina de ar condicionado, descobrindo quais eram as mais ruidosas, e, portanto, deveriam permanecer desligadas durante o espetáculo, e quais poderiam permanecer ligadas.


Aí estava o vilão invisível. Escondido, no alto, em cima das cabeças de todo mundo, expelindo um bafo gelado e ruidoso.
Neste caso específico, o espetáculo estava sendo apresentado num lugar não muito apropriado para um espetáculo teatral: uma casa de shows (http://www.carnavalscala.com.br/
). Geralmente o som desse tipo de casa é tão alto, que o que menos se percebe é o som do ar condicionado.

Já o teatro é primo-irmão do silêncio. Eles se combinam. O teatro ama o silêncio, assim como ama escuridão. Os efeitos e toda a magia do teatro só podem ser revelados quando há essa neutralidade do espaço. E nada mais neutro do que o silêncio. Claro que por trás de tudo há um conceito, e, às vezes, em determinados espetáculos, o oposto da neutralidade é que tem que se fazer presente. Mas isso é construído, e não dado. O fato é que o silêncio deve ser o primeiríssimo habitante de um teatro. Infelizmente não é isso que acontece ...