quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O VILÃO INVISÍVEL



Eu estava no Rio de Janeiro fazendo o espetáculo Quem Tem Medo de Virgínia Wolf, com o Marco Nanini, Marieta Severo, Fábio Assunção e a Sílvia Buarque, no verão de 2001, quando a ilustre Andréia Zeni me ligou. Ela me disse que, desde a estréia, o espetáculo Alta Sociedade, com Fernanda Montenegro e Ítalo Rossi, estava com muitos problemas na sonorização. Andréia me pediu para ir ao Scala (casa de shows no Rio de Janeiro) para entender o que havia de errado com o som. Por sorte, a temporada do Quem Tem Medo já estava no fim, e eu poderia, além de resolver o problema da sonorização, substituir o rapaz que estava fazendo a operação de som do espetáculo.
Assim que fui apresentado à Fernanda, ela me disse que o problema com a sonorização, parecia com aquelas doenças em que cada médico dá um diagnóstico diferente, e, portanto, um remédio diferente. Depois de conversarmos, Fernanda, Ítalo e toda a equipe técnica apresentaram o espetáculo na íntegra, para que eu pudesse perceber o que havia de errado com o som.


Ao me sentar na platéia, percebi que o som do ar condicionado
me abraçava. Além do abraço do ar em si, havia um tilintar irritante que vinha de dois imensos lustres de cristal pendurados na platéia. Em cima de cada lustre, um duto de ar ficava obrigando um cristal a conversar com o outro. Os cristais e o ar condicionado só não se deram conta de que atrapalhavam o público lá em baixo.
Uma coisa é certa, raramente o espectador racionaliza esse tipo de problema, " nossa, quanto ruído tem nesse teatro, fiquei tão irritado que nem consegui prestar atenção"; é muito mais comum o espectador pensar: " não gostei, achei o espetáculo meio chato ". É claro que o ruído do ar condicionado ou seja lá qual ruído for, não determinará a aceitação, ou não, do público ao espetáculo. Mas pode influenciar, e muito, a percepção do espectador; além de exigir um tipo de concentração que o público raramente está acostumado a usar -- ainda mais na era da concentração fragmentária induzida pela televisão.
Diferentemente da visão, que pode ser instantaneamente direcionada para qualquer lugar, sem o menor esforço; a audição, quando se quer apurar um determinado som no meio de tantos outros, exige um certo grau de concentração. Esse grau de concentração, quando exigido de maneira involuntária e inconsciente, faz com que o espectador fique num estado de tensão, contrário ao que se espera de um público de teatro.

Por fim, acabei resolvendo o problema, não só com a troca de alguns equipamentos, e com a realocação de algumas caixas acústicas, mas, principalmente, testando máquina por máquina de ar condicionado, descobrindo quais eram as mais ruidosas, e, portanto, deveriam permanecer desligadas durante o espetáculo, e quais poderiam permanecer ligadas.


Aí estava o vilão invisível. Escondido, no alto, em cima das cabeças de todo mundo, expelindo um bafo gelado e ruidoso.
Neste caso específico, o espetáculo estava sendo apresentado num lugar não muito apropriado para um espetáculo teatral: uma casa de shows (http://www.carnavalscala.com.br/
). Geralmente o som desse tipo de casa é tão alto, que o que menos se percebe é o som do ar condicionado.

Já o teatro é primo-irmão do silêncio. Eles se combinam. O teatro ama o silêncio, assim como ama escuridão. Os efeitos e toda a magia do teatro só podem ser revelados quando há essa neutralidade do espaço. E nada mais neutro do que o silêncio. Claro que por trás de tudo há um conceito, e, às vezes, em determinados espetáculos, o oposto da neutralidade é que tem que se fazer presente. Mas isso é construído, e não dado. O fato é que o silêncio deve ser o primeiríssimo habitante de um teatro. Infelizmente não é isso que acontece ...


5 comentários:

  1. Algumas cervejas depois... enquanto seus ouvidos são capazes de ver o silêncio. Eu, aqui, de olhos arregalados escuto o teu silêncio sonoro.
    Adorei o blog! Estou ansiosa, desculpe-me pelo barulho, mas, repito: ansiosa para ler o próximo texto!!

    Beijo Grande

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  2. Excelente.
    Assunto inesgotável.
    Tiraste a idéia do nome do blog do livro O Ouvido Pensante de Murray Schafer?

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  3. Bacana o blog, o post tá grande, mas muito bem escrito e descrito, possibilitando uma narrativa gostosa e com direito à imaginação.

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  4. Tirei sim. Além desse livro, o autor tem um livro chamado A Afinação do Mundo -- é muito bom também.
    Obrigado pela força!

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